Todo o século vinte e um é um trinta e um. “Não se vê que sou eu mas é um retrato” é uma ficção teatral e plástica a partir de encontros com portugueses entre os 9 e os 90 anos sobre as suas vidas e as suas noções de comunidade. A base fornecida por este conjunto de entrevistas é alterada, expandida e conectada por um trabalho de escrita de ficção e de encenação que contém simultaneamente o imaginário singular de cada participante e a sua diluição numa visão de conjunto.
De perto, cada indivíduo está sempre entre dois ou vários indivíduos, pertencendo a todos e a nenhum, sem no entanto pertencer-se. De longe, há a escrita que veste e despe personagens que nos vão falando das sedes deste século. Perguntamo-nos o que aconteceria se mais de 30 pessoas que não se conhecem à partida, ficassem presas numa sala e tivessem apenas uma hora para gerir as suas diferenças e encontrar forma de dali saírem. “Não se vê que sou eu mas é um retrato” é feito deste cruzamento caleidoscópico de testemunhos reais, utopias de vida em conjunto, desejos, ideias de comunidade, sedes e regras de mecânica inventada.
Durante o processo de criação da peça descobri como as narrativas – individuais ou colectivas – funcionam como automatismos que acontecem à revelia dos eventos e dos desejos. Mesmo na tentativa de composição mais fragmentária e des-síncrona desenha-se um atlas de sentido. Parece inevitável: tal como nas leis da matemática bastam dois pontos para formar uma linha, bastam dois eventos para edificar o princípio de uma história comum, bastam duas pessoas para formar uma ideia de comunidade. Procurei aceitar esta condição, aplicando à dramaturgia deste trabalho elementos que vejo acontecer no movimento das nuvens, pensando a ideia de comunidade e identidade como algo temporário, em movimento permanente e ininterrupto.
Rita Natálio