Dissertação de Mestrado: “Papagaios ao espelho”
Núcleo de subjetividade, PUC-São Paulo, 2015,
Orientador: Prof.Dr. Peter Pal Pélbart
Bolsa: Fundação Calouste Gulbenkian 2012-15
(excerto)
“Nesta pesquisa tentaremos discutir a relação entre imitação e invenção na vida individual e a sua relação com uma possível sustentação social, económica, política e subjetiva do contemporâneo. Para isso, partiremos de textos originais do final do século XIX do sociólogo francês Gabriel Tarde e dos seus ecos contemporâneos em Maurizio Lazzarato, que encontraram na imitação e invenção ferramentas heurísticas para observar o campo social e subjetivo. Hoje, imitações e invenções parecem partilhar lugares ou funções comuns ou mesmo trocar de lugar. Vidas misturam-se na imitação voraz de modelos, modas e modos de vida, ao mesmo tempo que se lançam em invenções ou usos inesperados desses modelos através das redes sociais, da experimentação de multi-pan-eco-sexualidades virais, da multiplicação dos consumos, de novas alianças biopolíticas, da reprodução artificial, da subversão dos géneros e dos tipos, do uso de todo o tipo de drogas do regime farmacopornográfico, etc. Nesse jogo de funções, imitação e invenção co-operam ao nível infinitesimal, elas podem ser percebidas como matéria vital de um movimento cada vez mais integrado do capitalismo e dos afetos, mas também operam paradoxais saltos quânticos na reconfiguração das forças, das máquinas, dos corpos e das identidades contemporâneas.
Os lugares de ambas são de tal maneira indistintos que no consumo a capacidade de imitação pode funcionar paradoxalmente como uma mais-valia na construção de um valor diferencial dos indivíduos (por ex. conferindo áquele que imita a construção de um caráter, de originalidade ou de pertença a um determinado tipo), enquanto no campo da tecnologia a capacidade de invenção pode ser facilmente manipulada dentro um quadro de oportunidades já produzidas, não se diferenciando muito de uma imitação. O nosso ponto de partida é este rumo cada vez mais indistinto destas duas forças e a sua relação com a estrutura das relações produtivas, mas também um interesse específico pelo que sustenta o crescimento viral da imitação, avidez (expressão usada por Tarde) que tende a expandir e a dilatar as imitações, hoje sobretudo com o recurso às redes sócio-técnicas que se fusionaram com os corpos contemporâneos.
De uma maneira geral, a mais impressionante manifestação deste fenómeno, é o uso do nome “viral” para a difusão em larguíssima escala de ideias, opiniões ou práticas sociais, muitas delas incentivadas por empresas como o Facebook que apelam a uma promoção viral de conteúdos dos perfis sociais em troca do pagamento de uma soma de dinheiro. Andando a passos ritmados com o capitalismo, esse movimento viral da imitação, parece também instaurar um devir-repetidor ilimitado que resiste à simplificação do capital e que progressivamente quebra o fundamento das identidades, do sujeito como centro do conhecimento e da sociedade, dos direitos autorais, e inclusivamente penetra o código genético único que cada ser possuía até há bem pouco tempo para lançar as individualidades num território esquizo, cuja cartografia ainda desconhecemos.
Para tentar pensar mais sobre esse fenómeno, usaremos ao longo do texto a expressão papagaios ao espelho, expressão onde se ensaia um movimento duplo: o de retirar o privilégio atribuído longamente pela tradição ocidental à noção de invenção (colada com a noção de indivíduo e de sua indivisibilidade) e o de devolver à imitação a sua potência igualmente criadora onde se expressam, de forma voraz, as subjetividades contemporâneas. Os papagaios ao espelho do século XXI são estas identidades parceladas, fusionadas em redes sociais, misturadas em bancos de dados, dinamizadoras do estilo planetário do Gagnam style, identidades maquínicas.
Para pensarmos um pouco mais sobre esse assunto, organizámos o nosso texto em algumas fases. No ponto 1 faremos um mergulho no pensamento de Gabriel Tarde, trazendo o olhar atual de Lazzarato sobre a sua obra que já por si encerra uma visão aberta e anímica da imitação e invenção como ferramentas de uma sociologia não antropomórfica. No ponto 2 misturaremos Tarde com narrativas avulsas, passando pelo pensamento platónico e aristotélico sobre imitação, por Andy Warhol, Oswald de Andrade e mesmo um papagaio que aprendeu a falar depois de se ver num espelho. No ponto 3 discutiremos o filme Holy Motors de Léos Carax de 2012, onde imitação e invenção são apresentadas como injunções de uma vida contemporânea e é na variação veloz entre estas forças, que se testam os limites da vida desta personagem como ser individual. No ponto 4 aplicaremos as ferramentas tardianas ao contexto da internet, trazendo uma rede de episódios onde imitação e invenção se tornam forças indistintas e também expressão de uma aceleração que dissolve os sujeitos. Nos pontos 5 e 7 pensaremos a partir de Grosse Fatigue de Camille Henrot e do projeto prático Museu Encantador de Rita Natálio e Joana Levi de que modo essa aceleração forma um “outro” tipo de conhecimento e subjetividade a partir de uma relação mais paritária entre imitação e invenção. Nestes pontos iremos refletir mais particularmente sobre a relação colonial como uma relação de imitação. E no ponto 6, intermediário, procuraremos pensar os aspectos especificamente maquínicos da relação do devir-repetidor com as redes sócio-técnicas.
Por fim, antes de avançarmos pelo texto propriamente dito, gostaria de chamar a atenção para algumas questões metodológicas. Ao longo da escrita desta dissertação decidimos incluir textos escritos em modos diferentes: cartas ficcionais, poemas, notas e imagens invadem o nosso projeto, movimentam o sentido do texto. É importante ressaltar que não se trata de buscar um modo literário diferente de um modo académico, mas de retirar a fronteira entre modos e problematizar a produção de singularidade de uma vida individual. A apropriação, a repetição, a proliferação de vozes e visões, a criação de proximidades “anormais” com os autores que nos servem de base para diálogos teóricos, são ferramentas de trabalho práticas para o apuramento de uma voz própria, neste caso da minha voz como autora que põe em trânsito a sua singularidade dentro de uma dinâmica entre imitação, invenção e variação. Colocar a repetição ao espelho ou criar salas de espelhos para a imitação e a invenção (e aqui de novo os famosos papagaios ao espelho que dão nome a esta dissertação) tornou-se um caminho para podermos enxergar que forças estão envolvidas na produção do novo, um pequeno laboratório de subjetividade onde se experimenta a escrita.
Para isto, gostaria de praticar uma escrita que ondula e se espalha, sem necessariamente delinear um edifício teórico coeso. Será possível? Escavar ideias sem necessariamente buscar uma aparente unidade diagnóstica do contemporâneo, antes praticar uma atividade rotineira de cercar campos problemáticos com desenhos na areia. Ideias passam pelas bocas, atravessam os corpos. Ideias e corpos misturam-se, os corpos aguentam muito e podem mesmo misturar as variadas ordens e naturezas que a lógica separa. Nessas passagens, todas as unidades são membrana, nada guardam, apenas respiram e os indivíduos são apenas um instante suspenso de um imenso fluxo extra-individual.”
Artigos publicados
A máquina de imitação global de “Grosse Fatigue” de Camille Henrot, Revista Movimento, USP, 2015
Reinventar a máquina de imitar: viralidade e vitalidade, Cadernos Subjetividade, PUC-SP, 2015
Papagaios ao espelho: imitação e invenção na vida individual contemporânea – Revista Lugar Comum #45, Uninomade, 2015