MelTe, 2008

No Verão dois mil e oito visitei o japão pela primeira vez, com o objetivo de encontrar alguns artistas de butô[1]. A participação nos workshops com as companhias Torifune ou Sankai Juko foram particularmente marcantes. Estes aconteciam por períodos intensos de 15 dias num estúdio na montanha ou em vales de plantação de arroz, com uma rotina diária metódica. Uma parte do treino matinal passava por uma série de exercícios de Nogushi[2] que têm como objetivo criar um relaxamento profundo das camadas musculares externas e trabalhar os músculos posturais (mais próximos das articulações) através de alongamentos e mobilização das articulações. Com o calor úmido do verão japonês não é difícil sentir o corpo abrir e amaciar, ao mesmo tempo que se torna estruturalmente, bem posicionado. Isto é, usando uma postura física adequada e económica a nível do esforço, fase aos movimentos que necessitamos fazer. Estes workshops foram o contexto de aprendizagem fundamental para projetar a performance e o corpo-MelTe. Com estas companhias aprendi e integrei uma velocidade lenta, um tónus muscular forte ainda que macio e uma mentalidade perseverante.

Foi precisamente numa noite na ilha de Nao Shima quando decidi dormir na praia, que imaginei o meu corpo escorrer do topo do Castelo de São Jorge até ao Rio Tejo. Nessa noite escolhi como cama umas rochas arenosas que foram esculpidas pela corrente de água e escorriam em direção ao mar. Não sendo uma superfície completamente lisa, ajustei a minha posição à geografia da rocha, entregando-me a ela, relaxando toda e qualquer tensão até estar confortável o suficiente para conseguir dormir. Então assaltou-me o medo: e se, ao adormecer eu tornar-me líquida ao ponto de poder escorrer para o mar? Um ano depois eu fazia pela primeira vez a performance MelTe no Festival Pedras d’Água em Lisboa, de uma forma um tanto ou quanto radical: eu começava a “escorrer” às 6h da manhã e terminava pelas 11h.

O corpo humano escorre rua abaixo, num encontro íntimo com o chão. Chão duro, irregular, sujo.

Eu queria experimentar o novo peso, a nova consistência e a nova velocidade do meu corpo, mas no caso de MelTe não era apenas uma metáfora física de “ser-líquido”. Para estar no chão da cidade eu tinha de repensar e, ajudar a pensar, o corpo-social e seus parâmetros de conforto, limpeza e dureza. Eu precisava de refletir, experimentando a relação com o que é “conforto” e considerar que uma superfície dura, possa ser macia.
Foi na relação entre tocar e ser tocado— eu toco a esquina com a mão, a esquina toca a mão— que descobri a margem de manobra para a alquimia do desconfortável verso confortável. Permitir que a dureza do chão me acaricie as costas e vice-versa, permitir o chão tocar a minha mão e vice-versa… e assim evocar outras vias de relação com o que é sujo, duro e por isso desconfortável. Uma relação que não termina na constatação do facto da carne, do osso e da pedra serem de consistências diferentes, mas que continua no tecer de uma relação fluida onde as diferenças não se disputam, mas permitem-se. Contudo o corpo-biológico defende-se e resiste: a mão não quer tocar o chão porque ela aprendeu a não tocar no que é sujo para proteger o interior do corpo.

No corpo-MelTe a mão deixa de existir enquanto “mão” e dilui-se.

É nesse sentido que se constrói esta dança, transgredindo funções e formas para criar outras que permitam devir corpo-líquido, adaptando-se a todas as irregularidades. Mas, não é só o meu corpo que se adapta à geografia acidentada da cidade, como a cidade se adapta a este corpo que se move no lugar dos adjetos. Esta é uma dança que escorrega, desliza, rebola, pela geografia acidentada de um lugar específico da cidade— uma colina que tenha uma forte inclinação. MelTe dá visibilidade à geografia, à arquitetura e aos que vivem a cidade.

Escadas usadas e amolecidas pela chuva. Pedras da calçada assentes diretamente na terra. O lugar dos cães e das ervas. O lugar que desce.

Não se trata de um happening performativo, trata-se de um trabalho de encontro entre matérias pouco compatíveis e que potencialmente podem ser nocivas. Por isso, vou para a rua dias antes da performance propriamente dita. Vou deitar-me de cabeça para baixo nas escadas, vou usar um degrau como almofada. Vou testar a cumplicidade dos moradores para que estes possam, depois apreciar o corpo-rasteiro de MelTe. Converso com quem passa e com quem quer conversar. Os primeiros assuntos são “o que estou ali a fazer e porquê?”, “ Caiu ou está a cair?” a resposta é sempre a mesma, estou a trabalhar para fazer uma dança. Depois desvio o assunto e converso dos afetos, do tempo, da comida, da rua, do ontem e do amanhã. É assim conversando que toda a rua se mobiliza para o acontecimento da performance: lavam-se as escadas e as pedras da calçada, enfeitam-se janelas e dá-se um arranjinho nas plantas. No fim oferecem-me copos de leite fresco e massagens com alfazema. MelTe propõe ao espectador um olhar macio face às coisas rasteiras.

Pedrinha miudinha
Respira nas dobras.
Não ignores os seres rasteiros.

[1] O butô é a dança vanguardista que despoletou na década de 60 em Tóquio, Japão, sendo os seus mentores mais conhecidos Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno.

[2] Noguchi Taisou é uma série de exercícios desenvolvidos na década de 60 por Noguchi Michizo. O seu sistema é baseado no conceito do corpo como uma massa de fluidos envolvidos por um “saco” de pele, onde a estrutura óssea e orgânica estão suspensas.

Melte ana rita teodoro parasita

ⓒ Amaranta Krepschi

2018


15.03
MelTe
Ana Rita Teodoro
Festival DãnsFabrik / Brest, França

2016


01.05
MelTe
Ana Rita Teodoro
Festival DDD, Serralves / Porto, Portugal

2014


01.07
MelTe
Ana Rita Teodoro
Atalaia, Castro Verde, Portugal

2012


14—29.09
MelTe
Ana Rita Teodoro
Festival Materiais Diversos / Portugal

2010


01.07
MelTe
Ana Rita Teodoro
Fiar / Palmela, Portugal

2009


01.07
MelTe
Ana Rita Teodoro
Festival Pedras d’Água / Lisboa, Portugal